25.8.05

4h45 da manhã

Viviam os três na casa. Eles os dois e a arma. Embora a tivesse visto apenas meia dúzia de vezes, ela lá estava, escondida no guarda-fatos do abafado quarto de casal. E às vezes, durante a noite, quando o som dos corpos se misturava com o ruidoso clic da pequena fechadura do armário, sabia-se, desde logo, que Ela iria ver a luz da noite e do candeeiro velhinho, uma das poucas peças que sobraram das constantes mudanças de casa.
Nas primeiras vezes, rezava à santa e, quando Ela voltava para o reino da escuridão e os corpos ficavam a salvo, costumava adormecer com o coração a explodir de amor pelos céus, que a haviam salvo da vergonha, uma vez mais. Porém, com o tempo, o peito foi-se habituando às investidas do reino das trevas e mesmo nas horas de maior aflição permanecia no corpo a estranha sensação de que haveria de correr tudo bem, uma vez mais, e a arma voltaria a dormitar junto da roupa, no pesado armário de madeira.
Até que um dia, aconteceu. E nem teve tempo para perceber se o som seco que se fez ouvir a meio da noite, fazendo tremer o relógio do velho campanário de pedra da aldeia, proveio da arma ou da sua própria cabeça, que explodira entretanto. Às vezes, quando era criança, tinha medo que a casa ruísse. Com o tempo, instalou-se na parede do quarto, mesmo junto à janela, uma fenda muito pequena que lhe ocupou os pensamentos das noites desse verão, sob a forma de pesadelos. Também o céu lhe poderia cair em cima da cabeça a qualquer instante. Estava longe de imaginar, nesses anos, que o inferno partia dos corpos e não dos céus.

24.8.05

Virginia Woolf

De tempos a tempos, perco-me numa canção. Desta vez, a musiquinha que me ocupa as horas de tédio é "Out in the Park", da Sarah Slean. Tem pedacinhos de Fionna Apple e Tori Amos, o que aparentemente pode justificar a preferência.
Hoje é dia de enxaqueca e de deslocamento em relação ao mundo. Momento para perceber que os headphones são, em definitivo, a melhor invenção de sempre.
Melhores momentos virão, certamente, como o dia em que o meu livrinho de contos chegar finalmente às bancas ou a hora em que voltarei a fazer rádio.

23.8.05

E a canção não é da Suzanne Vega.

Havia uma canção da Suzanne Vega, “The Long Voyage”, e eu embrenhada em versos e em rascunhos medíocres num caderno negro Moleskine que agora anda perdido nas prateleiras das minhas estantes. A designação de "menina das letras" pode justificar a minha passagem pelo mundo e tornar o sentimento de estranheza (causado por um fuso horário que nunca existiu) no princípio da menor incerteza possível. O livro de contos há-de sair em breve, prometo-te. Até lá, deixo-te o meu coração povoado de linhas e de estórias que, para já, não têm rumo.

14.8.05

Restos de um poema de uma canção sem nome.

A realidade e, em seguida, o estado do tempo.

3.8.05

Excertos de uma carta a um amigo.

I

Os passos das freiras, pela manhã, nos corredores gigantes e frios anunciavam a alvorada e faziam estremecer as meninas, ainda nos seus leitos pálidos,absortas em pensamentos que Jesus de certo desaprovaria, mesmo no alto do seu esplendor e complacência de santo. Era Pecado e um arrepio de frio cortava-lhes o corpo de uma vez só. O medo surge materializado, pela primeira vez, no murmúrio implacável e poderoso do Pecado. De noite, as horas eram de sobressalto, porque os santos saíam do altar e dos quadros pendurados nas paredes húmidas e dançavam ao som de cânticos mórbidos que, muito devagar, iam anunciando o inferno. Nas noites de Inverno, ouvia-se o crepitar das chamas, mesmo por debaixo do soalho de madeira e as meninas abraçavam-se ao terço, a rezar.

II

O medo corrói-nos os olhos e o coração, a pouco e pouco, (...). Os anos são medidos, não raras vezes, pela contagem de membros e talentos que ainda nos restam e pelo número de amputações que o medo já nos causou. Somos esperas silenciosas e o medo alimenta-se de esperas e de amores desfeitos. Com o passar dos anos, o medo carcome-nos o coração e, no seu lugar, instaura uma caixa vazia, onde ressoam apenas pequenas batidas mecânicas e frias que anunciam que, para infelicidade da alma, o corpo ainda vive. O medo come diariamente as nossas quedas vertiginosas, as dores de cabeça constantes, o cansaço e ódio pelo passar silencioso das horas. (...) Somos filhos do medo, submersos irremediavelmente nas suas raízes que, há muito, se cravam sob a nossa pele. Temos horror ao vazio e ao silêncio porque quando nada existe ouvimos apenas o tic-tac do relógio do medo que anuncia que o Juízo Final – o dia em que o medo tomará conta do nosso corpo - se aproxima a passos largos.

III
O medo nasce da estúpida inclinação natural que o homem tem para o amor. Infeliz aquele que ama com todas as suas entranhas, porque rapidamente ficará sem elas. (...) O medo é, portanto, filho do amor e tem mãos de gigante. (...)

IV
(...)

V
Ainda te consegues lembrar dos primeiros instantes de uma paixão, abstraindo-te do amor que agora sentes?(...)

VI
Esquece os passos das freiras. Entra na casa antiga. Ouve com atenção o som dos teus passos misturado com o teu próprio respirar, cada vez mais pesado. Sem medo, abre as grandes portas que encerram as enormes janelas e afasta, num gesto só, as pesadas cortinas de veludo que ali jazem há décadas. É muito provável que a luz te possa cegar. Perde-se sempre o hábito às coisas, aceita o destino com naturalidade. Porém, no meio da enfermidade, o medo vai morrendo com o reflexo do sol, como se de uma bactéria húmida se tratasse. É um processo lento, meu amigo, mas a pouco e pouco hás-de recuperar a visão, outra vez. Não entres em pânico. Os olhos estão apenas a habituar-se à claridade.

(...)
02 de Agosto de 2005

2.8.05

Um fragmento de "Lunar", um conto de "Antídoto"

«Não passou muito tempo desde que a manhã nasceu. Passou muito
tempo desde que me deixaste sozinho entre as sombras que se confundiam
com a noite. Noutras noites, olhámos para a lua. Nesta noite, não olhámos
para a lua. Noutras noites, olhámos para a lua e enchemo-nos de desejos.
Nesta noite, não olhámos para a lua e sofremos. Noutras noites, olhámos para a lua e não sabíamos o que era sofrer. Escuridão e esperança. Na lua,
víamos mais do que o reflexo daquilo que queríamos inventar: os nossos
sonhos. Víamos um futuro que era maior do que os nossos sonhos e que nos
envolvia e que nos puxava para dentro de si. Nós sabíamos que nos esperava
algo muito maior do que aquilo com que podíamos sonhar. Estávamos
enganados. Aqui, sobre estas pedras que brilham, sob estas lágrimas no meu
rosto, sei que nos enganámos e sei a lâmina infinita de uma faca.» José Luís Peixoto