27.7.18

Cerejas na noite.

A lua refeita no tanque da água,
verão ou maio.

Era o tempo das cerejas e tu estendias-me a mão.


Depois dançámos, cansados


 o corpo a arder. 
Morreu o Ti Manel Germano.
Ser da aldeia é ser alegre, mas também é ser muito mais triste. 

É ser Inverno e frio a sério, é ser a solidão da lareira nos dias de neve e a saudade de quem tem de voltar à cidade sem querer. É ir enchendo baús de memórias com mulheres vestidas de preto a murmurar e é as campas a cheirarem a flores no dia dos mortos. É ruas desertas, mato que cresce, são os bancos da Igreja vazios mas que continuam a ter lugares marcados. É o vento a bater nos telhados durante a noite como se o mundo estivesse prestes a acabar e o latir dos cães quando alguma coisa está errada. É aceitar certas fatalidades da vida e ficar a ver os castanheiros a arder nas encostas, tal e qual candeias gigantes. E é ir perdendo, todos os dias, pontos de referência. As pessoas e os sítios que nos construíram - num lugar que achámos ser tão grande e que afinal é pequenino, ainda que seja o maior do mundo - vão desaparecendo. E não são substituídos. Quando alguém morre, tranca-se a porta de ferro à chave e fica só o silêncio. Até que um dia a casa já não é casa e é uma pedra só. 

Ontem morreu o Ti Manel Germano, que era do ano da minha avó Rosa. É assim que na aldeia se calcula quem poderá morrer a seguir. Há uma ordem estabelecida para todas as coisas - até para a morte - e todos sabem o ano e o mês de nascimento dos que ainda vivem. A morte é natural. Chega de vez em quando e aos bocadinhos leva uma geração inteira. De cada vez que alguém morre, o sino toca muito devagar e faz-se silêncio. Com o mesmo coração pesado com que se escuta o uivar de um cão a meio da noite - sinal de que alguém está para morrer. 

Quando era miúda ia à quinta do Ti Manel Germano, uma casa afastada da aldeia e sozinha no meio da encosta que desce para o vale da linha do comboio. Sempre foi o meu lugar favorito, porque os horizontes eram gigantes: em frente uma encosta gémea a nascer do vale, mais acima a Serra da Estrela, à esquerda a Cova da Beira, Belmonte e a Covilhã e à direita a caprichosa e fria Guarda de que nunca fui capaz de gostar. O ti Manel era casado com a ti Matilde, uma açoreana deportada para o interior do Interior. Pelo menos é assim na minha cabeça. Na aldeia não questionamos o porquê de determinadas coisas. Guardamo-las e tornamo-las nossas. Habituei-me a gostar do nome Matilde, da mesma maneira que tudo me fascinava na quinta e na casa. Havia uma fonte mesmo à porta, em que a água nunca se esgotava ou cansava de correr para um tanque de pedra. Nunca houve energia eléctrica, mas a claridade do sol ali era maior porque a luz já é a da doçura da Cova da Beira. Eu tinha sempre muitos problemas nas costas e fazia entorses no pé esquerdo na altura em que jogava basquetebol com a frequência com que se apanha constipações no Inverno. E era o Ti Manel Germano, provavelmente o homem mais alto da freguesia, que me punha os ossos no sítio. Às vezes colava-me emplastros de ervas nas costas ou ligava-me o pé. Respirava com muita força quando me massajava o corpo durido e na minha cabeça tinha mais força que mil homens juntos. 

Com os anos, os comboios deixaram de passar na linha e a pequena caseta da CP ficou coberta de mato. Na encosta do lado de lá, ao mesmo nível da quinta, construiu-se uma auto-estrada. Houve anos em que os carros que passavam eram em número suficiente para provocar uma espécie de zumbido quase constante e que abafava as vozes que costumavam ouvir-se das aldeias do lado de lá. Ultimamente já não passam carros. Aos sábados, quando fazia sol e eu não tinha sono apesar de ter acordado cedo para fazer a viagem a partir de Lisboa, fazia-me ao caminho a pé para visitar o ti Manel Germano. Não sei dizer em que ano a ti Matilde morreu - há uma parte da história da minha aldeia que não sei contar, era miúda e queria andar por longe. Demoramos algum tempo a compreender a importância do lugar de onde viemos. 

De todas as vezes que me fiz ao caminho, a fotografar ouriços ou chagas de Cristo floridas até à quinta, lá estava o ti Manel Germano. Do cimo da encosta, onde fica a aldeia, até quase ao vale anda-se dez minutos e duvido que haja vista mais bonita no mundo inteiro. Às vezes, ficava nervosa com o cão que guardava a quinta e patrulhava a casa. Houve dias em que cheguei a ter de descer até à linha de comboio e voltar a trepar pelo meio do mato para me aproximar da casa por uma zona onde os cães se recusavam a ir - nunca percebi porquê. Era daí que gritava: "ti manel germano!" Nos últimos anos, ele já não me ouvia e eu tinha de bater à porta de madeira com muita força até que desse conta que havia gente na rua. O último cão, como que a adivinhar a surdez do dono, era mais simpático e deixava as visitas abeirarem-se da casa. O ti Manuel Germano andava apoiado num cajado e tratava-me sempre por R. Não tinha luz, televisão ou frigorífico. Fez da vida o que a vida tem de mais verdadeiro: estar. A casa, que tem a melhor vista do mundo, vai acabar por ser uma daquelas ruínas sozinhas ao sol. Um dia, uma miúda como eu, numa outra vida, ha-de por lá passar e deitar-se a adivinhar quem ali viveu um dia. Nessa altura, também eu já serei pó, surpreendida por o mundo continuar a girar.

 A água da fonte ainda há-de correr e a vista continuará a ser a mais bonita do mundo.

A enumeração das coisas partidas

Dentro do peito há
 
cidades que matam, néons que cegam,
catedrais abandonadas.
Anjos de granito estragados, solidão, coisas de cemitérios. 
Há ilhas que tremem, vulcões e continentes;
corações esmagados, silêncio, calor, alcatrão.
Amores esquisitíssimos, moradas antigas, papéis rasgados.
Há princípio, meio e fim.
Coisas mortas, cancros; memória, vasos, 
Outono e versos. 


Territórios por reclamar.

26.7.18

Poesia

Escuta. 
Há uma história de anjos caídos amarrada em cada palavra. 
Nem mil âncoras seriam capazes de travar a fúria que a noite traz. 

Exércitos, as palavras.