17.2.05

Olhares indiscretos, nas janelas, observam os estudantes. Denunciam-lhe os movimentos. Invejosas, as gentes serranas arrastam os corpos para a esquadra. Os Agentes agradecem tanto movimento. Porque um dia não são dias. É preciso agitação e progresso. Como nos policiais. Hoje, as ruas ressacam do Natal. Os contentores de lixo rebentam de tantos micróbios. Restos de marisco, caixotes de brinquedos para os meninos. O vento agita papéis de embrulho pelo ar. Esta noite nevou na serra e cá em baixo sente-se o frio de um degelo anunciado. Não há vozes, não há estudantes para espiar. Expiam-se, então, pecados. Lembram-se os velhos tempos de consoadas em tudo fabris. Nas escadas da Boavista, não há poetas que possam alegrar-se com as luzes da paisagem, de Santo António à entrada do Fundão, junto à linha do horizonte. Sozinhos, no chão, restam as pontas dos cigarros que algum estudante enfastiado ali fumou.

Cidade Neve

A Covilhã serpenteia na encosta da Serra da Estrela. Debaixo das calçadas escuras e vertiginosas correm rios amorfos e de noite os lobos fazem cercos às luzes, escondidos no mato da serra.) Quando a claridade se esconde, as ruas tornam-se amarelas, de tão gastas pelo tempo. Virgens da lã e da neve entoam cantigas antigas, enquanto rodopiam sobre os teares mortos que jazem nas calçadas. (Todas as ruas têm fantasmas mudos de fiadeiras e pedras gastas. É ver desfilar os casarões dos ricos no cemitério, indiferentes ao novo olhar que o tempo trouxe à cidade.) De noite, nas ruas mais escondidas, chega-nos o cheiro a mofo das janelas que o vento partiu nas casas abandonadas. Apodrecem sedas, veludos e brocados dos enxovais das meninas nos salões e nos varandins. Sobrevivem as carquejas na encosta e o velhinho Miradouro a caminho das Penhas. Tristes, assistem ao lento apagar das serpentinas de luzes das grandes fábricas, enquanto a última Estrela da Serra agoniza.
As gentes desta terra afogam-se em fotografias de vestidos de chita e em álcool. As noites são passadas nas agonias das esplanadas, enquanto os artistas jazem quase moribundos nas ruas da cidade. Pedem esmola. Pedem voz. A Cultura é o nome que se respeita, mas que se afoga, porque antigamente havia o Café Montalto e as tertúlias dos poetas e dos políticos. Hoje sobrevivem pequenos gestos furtivos, como o toque pessoal que se dá às mãos quando se fuma. Há tanta gente louca a vadiar pelas ruas! Trazem o olhar sujo dos fumos das grandes fábricas. Trazem o passado enterrado nos bolsos vazios. Trazem a cor do dinheiro fundida nas mãos. Ficaram, para que lhes possamos fazer uma vénia, as cicatrizes nas mãos, obra dos teares, o desejo cego de parecer e um bago de arroz sobre a mesa do jantar.