26.6.05

Esquece tudo o que te disse

A RTP fez o favor de mostrar a comédia de costumes do António Ferreira, embora tenha sido tarde e a más horas. "Esquece tudo o que te disse" foi inúmeras vezes apelidado de "Um filme português sem o 'português' no fim". Quanto a mim, a película do realizador de "Respirar debaixo de água" marcou um ponto de viragem no cinema em Portugal. Por ter levado tanta gente às salas de cinema, abriu caminho para "Os Imortais" (grande papel de Nicolau Breyner) e "O Milagre Segundo Salomé".

Não há filmes que interessem, ultimamente. É o marasmo.

25.6.05

O drama... o horror.... a tragédia

Que peninha que nós, "os portugueses", temos do Sr. Albarran! Cutchi, Cutchi!

23.6.05

Parabéns...

... à Rádio F, que faz hoje 15 anos. Disse o Director: "Apesar da crise, a Rádio continua a ser uma emissora de referência". Claro. Existem as rádios de referência e as rádio-tablóides.

22.6.05

A visitar

Encontrei, muito por acaso, um projecto interessantíssimo, com sede em Vila Soeiro, a 15 quilómetros da Guarda. Qualquer dia, reservo uma tarde para um passeio. Até lá, vou visitando as principais linhas do projecto aqui .

Balanço

Um jornal é um projecto sempre em construção, permanentemente no fio da navalha. É pena, no entanto, que muitas publicações não passem do registo de meras agendas de eventos, mais ou menos fidedignas, mais ou menos independentes.

21.6.05

Para quando a canonização?

A reportagem que a TVI exibiu há algumas semanas atrás, intitulada "O Pastorinho", (atente-se na alusão a Fátima) é o exemplo mais curto, claro e conciso (!) da profunda hipocrisia dos média relativamente à cultura medíocre que vivemos em Portugal. Esta noite, o referido canal televisivo voltou à carga, polvilhando os lares portugueses com mais uma dose, em tudo cáustica e difícil de digerir, da já familiar pseudo- generosidade que prolifera por aí (atente-se na expressão de desprezo). Desta vez, tratou-se de um espectáculo degradante e ofensivo do princípio ao fim, onde ficou bem clara, em todos os momentos, a falta de horizontes de um país sem perspectivas de futuro, onde as aspirações pessoais surgem, não com pouca frequência, reduzidas a uma caixa de roupa de marca (pois claro!) e um passeio à beira mar, patrocinado por uma outra marca qualquer.
O Pastorinho que, bucolicamente guardava o gado num lugar distante de Trás-os-Montes, é hoje e por breves minutos, elevado à categoria de herói nacional, como se todos nós nos orgulhássemos de um Portugal desertificado, ridículo e onde a cultura é uma miragem há muito esquecida.
E como os Pastorinhos são, afinal, três, não custa nada candidatar-me à próxima série desta saga que promete comover até os corações dos mais insensíveis. Estão, assim, e a partir deste momento, abertas as vagas para a selecção do terceiro elemento (pastoral!) da grande obra de caridade levada a cabo por um dos mais responsáveis e preocupados órgãos de comunicação social do nosso país. Isto sim, é o verdadeiro Serviço Público, meus senhores(!).

17.6.05

Os meus pedacinhos de passado aparecem-me envoltos em fitas cinzentas. Chama-se amor e parece que não há mais nada que interesse. Esta noite sonhei que era amada. Acordei com uma sensação de estranheza absurda. Perde-se sempre o hábito às coisas.

Nada pode magoar mais do que pedacinhos de passado envoltos em fitas coloridas

Numa altura em que tudo parece ruir, uma das poucas coisas que acalma é pôr o "Movimento" a tocar. Talvez seja, de facto, como descobrir bocadinhos de passado envolvidos em fitas coloridas. Nunca me dei bem com mudanças. Adaptar-me é confuso. Ultimamente não existem versos a fluir, nem quando me deito. Parece que abro as mãos e não encontro mesmo nada. De noite, assaltam-me insónias e pensamentos difusos.
Estou sozinha e, admito, tenho muito medo. A vida complica-se a cada passo que se dá, a partir de determinada altura. É suposto ser assim, não é? Não sei que faça com o tempo, com as memórias de dias dias felizes, com a sensação desta vez pouco antecipada de abandono.
Não me é agradável descobrir bocadinhos de passado envolvidos em fitas coloridas. Se calhar, é por isso que o meu coração ameaça ruir a qualquer instante.
Em muitos momentos, gostava de encarar os dias com outra calma e conforto. Tenho medo, agora.
Já nem sei se da solidão ou do abandono.

4.6.05

Sinais Interiores de Riqueza

' Quando, em 25 de Dezembro de 1863, Victor Hugo escreveu, num dos seus cadernos:
" Sou um homem que pensa noutra coisa",
referia-se, é claro, a mim. Quando almoço com alguém, por exemplo, deixo um sorriso sentado no lugar e escapo-me, em bicos dos pés, para outra mesa do restaurante, a desenhar comboios e navios na toalha de papel, na esperança de partir, numa locomotiva ou num paquete de tinta, para longe de um mundo de saleiros, de garrafas de branco e de cabeças de pescada. Em pequeno, na época em que me tentavam ensinar o catecismo, tinha de Deus a ideia de um vertebrado gasoso: levei séculos a compreender que o vertebrado gasoso era eu.
O resultado disto é que observo os objectos do quotidiano com a estranheza do homem das cavernas; nunca fui capaz de mexer num vídeo, todas as manhãs me corto com a gilete, preencher um cheque é quase tão difícil como resolver um problema de torneiras do género "se um tanque tem 3 metros de lado, quanto tempo uma torneira que debita 7 decilitros por minuto", etc. Desesperei os instrutores, na tropa, a virar-me para eles, de espingarda carregada, perguntando:
- Como?
numa incompreesão sincera, e a surpreender-me de os ver atirarem-se para o chão berrando
- Desvia essa merda
numa angústia que ainda hoje não compreendo o motivo.
Talvez tenha herdado isto de um tio remoto, que num velório, espantado com a tristeza do viúvo, o consolou com uma palmadinha no ombro:
- Não penses mais na morte da bezerra.
Sou um homem que pensa noutra coisa, que tenta abrir a fechadura da porta com o cigarro e que fuma um molho de chaves por dia: se adoecer de cancro do pulmão será um canalisador a operar-me. As palavras grandiosas como Trabalho, Família, Dinheiro, atravessam-me sem me tocarem. Dá ideia que não sei viver com os que amo ou que rejeito o seu afecto: não é verdade. O que acontece é que, às vezes, enquanto me acariciam, estou a observar as cegonhas da mata do sótão da tia Madalena, ou na esplanada da Praia da Maçãs, ao lado do meu avô, a comer um sorvete de morango. E gosto das pessoas modestas porque os sinais interiores de riqueza me comovem. A propósito de sinais interiores de riqueza a semana passada, na consulta do Hospital Miguel Bombarda, vi uma mulher nova, de quarenta anos: nasceu-lhe um caroço no peito e o médico não a quia operar porque a doença já lhe atingia os ossos. Quimioterapia. Uma mulher bonita, inteligente. Disse-me
- Ainda gostava de viver mais algum tempo
e vai morrer daqui a nada. Depois sorriu e perguntou:
- Vou ficar melhor, não acha?
Ela sabia que não e sabia que eu sabia que não:
- Claro que melhora, disse eu. Está linda, sabe?
- Toda a gente me diz isso agora. Faço quarenta e um no mês que vem.
Trazia o vestido dos domingos, colar, anéis, um risco azul nas pálpebras. A enfermeira abriu a porta, espreitou, viu que eu não estava sozinho, desapareceu. E o sorriso:
- Se calhar ainda nos voltamos a ver.
E eu a apertar-lhe a mão:
- Se calhar.
Ao sair, até a maneira de andar era elegante. E então pensei:
- Ainda bem que sou um homem que pensa noutra coisa. Se não fosse um homem que pensa noutra coisa ia ter vontade de chorar.
De forma que no momento em que o doente seguinte entrou já me esquecera dela. Graças a Deus, já me esquecera dela... '

António Lobo Antunes
Tenho saudades do Pablo. Muito devagar, encostava o imenso pêlo branco no meu colo. Invariavelmente, qualquer conversa sobre responsabilidade conduz a pensamentos difusos e pequeninos. O tempo tem o poder de dissolver na memória os pedaços de harmonia que um dia fomos. No frenesim constante de que somos feitos, alheios ao passar das horas, tornamo-nos invisiveis aos nossos próprios olhos. Crescer é ter medo. E o medo, tantas vezes o disse, alimenta-se de esperas e incertezas. Não sei de que massa somos feitos. Sei apenas que nos fica na boca o sabor amargo dos sonhos das muitas infâncias que nunca chegaram a acontecer.