30.9.04

Funeral

O meu mundo era tão radioso Por entre os moínhos de xisto. Hoje, surgem-me em sonhos, muito negros. A minha casa inteira. O corpo. Os ventos do Açor a uivar pelas ruas, no Inverno que não cheguei a conhecer. De madrugada, a serra espreguiçava-se no meu vestido de menina feliz e eu coleccionava os pedaços de xisto que a terra me trazia. A voz do meu avô João, por entre cadernos amarelos.Não sei porque quis queimar, tantas vezes, linhas e memórias antigas.
Aninho-me outra vez na quantidade absurda de cobertores que coloquei, propositadamente, na cama (faz frio, aqui). Engano a aflição da insónia com a certeza de que se te pintar um pouco mais em pensamento, posso ambicionar trazer-te para junto de mim (identidade ou representação. Tenho tanto frio). Podias vir acariciar-me os sonhos. Isto aqui até é bonito. Há meses, era insuportável habitar por entre estas paredes. Gosto de pensar, repetidamente, nas pinceladas de alegria que o teu amor trouxe à minha existência. Só que longe de ti tenho tanto frio! Há pouco fui à janela. Creio já te ter dito que daqui se vê, nitidamente, a Covilhã. Um fiozinho de luzes tristes a descer, de forma vertiginosa, pela encosta escura da Serra. E quis saber que luz abraçar. Já não faz sentido estar longe de ti. 24 horas é demasiado tempo. Uma noite sem os teus braços só sabe a amargo e ao arrastar pesado das horas. A ansiedade pesada da insónia. (E faz frio, já tinha dito?). Redesenho-te no azul frio das paredes e às vezes parece que sinto o teu corpo, deitado, atrás do meu, num lânguido abraço. Conheço-te os passos, os gestos e decorei as linhas da tua mão. De vez em quando, usas um tom cerimonial e colocas-te a meus pés. Dizes que me amas. E eu só penso em te prender para sempre. Toco-te no rosto, levemente, olho-te nos olhos e selo o juramento que invento em surdina com um beijo. É nesses momentos que o coração esquece o sobresalto. Perder-te seria o meu fim. (Morria gelada, certamente). Digo tantas vezes "Obrigado". Procuro o meu tom mais sentido e sério, porque me deste a vida, pela segunda vez. Porque hoje quero fazer ainda mais planos para sonhar. Como antes, quando era pequenina, e inventava o teu beijo. Sonhar é cultivar no fundo da alma a certeza de que é possível. E se antes me debatia com a tristeza e o medo do escuro, de noite, hoje fico a observar-te longas horas e conheço a coragem. Dás-me a vontade de atribuir ordem a todas as coisas que vivem dentro de mim. Tenho-me dedicado à catalogação e arquivo, por ordem alfabética, de um monte de papeladas antigas e cheias de pó. Coisas da razão. É desta forma que me sinto eu a dizer que é em ti me encontro. Sei quem sou por me saber embrenhada em ti. O sono não chega. Tive medo da lua quando fui lá fora e até o vento decidiu uivar em Setembro. E eu só penso na falta que fazes, aqui. Os meus pensamentos, incabados quase sempre, convergem, enquanto o tempo teima em se arrastatar morosamente, para a fotografia do teus sorriso- quando os teus olhos ficam pequeninos e brilhantes e eu estremeço de tanta certeza de te querer para sempre! Noto frequentemente que quando entramos num café somos muito observados, num misto de inveja e admiração (ou talvez esteja a alucinar com o frio). Esperando que não te apercebas, gosto de te pegar na mão e ficar em silêncio, munida do meu melhor sorriso, para que nos saibam guardar as suspeitas do nosso amor. Talvez reparem que a minha massa se misturou, irremediavelmente, com a tua. Talvez lhes grite que já não importa qualquer tipo de procura ou aspiração superior. Tenho tantas palavras de amor para dar ao mundo! Insistes em dizer que me amas mais. E eu gosto de ouvir, é claro. Mas o que tu não sabes é que, sem querer, acabas por mentir, porque, na verdade, não existe mais amor para além disto que sinto. E hás-de ser tu. Quanto a mim, estou destinada a desenhar o meu amor por ti, enquanto fixo os terríveis ponteiros do relógio na tua ausência, até deixar de correr sangue nas minhas veias. E quando morrer, hei-de encontrar maneira de comprar o meu coração e as memórias, sempre vivas, do nosso amor e ordenarei que sejam guardadas numa caixinha perfumada com jasmim para toda a eternidade.

29.9.04

" Quem me ama tem de adivinhar, não pode ficar à espera de ordens"

28.9.04

Monday, September 27. 2004

Sinto-me bonita. O que é que o sentimento de culpa pode fazer às pessoas? Levas a mal se ficar sufocada, por uns breves instantes? Tudo me sabe a poesia, ultimamente. O coração adormece em sobressalto e por não escrever, desafino. Quando acordo, de manhã, as rimas já fugiram e lembro-me sempre de que só sei escrever sobre coisas tristes, em forma de tragédia. Invento mil vezes o meu destino escuro e assino a minha própria execução. Conheço os contornes à máquina assassina onde me hei-de, um dia, sentar. Se te pedisse o mundo, tu davas-mo? É que assim poupávamos muitas inquietações. Não que eu queira, verdadeiramente, o mundo. Mas é tão confortável...

20.9.04

Nada me incomoda e repugna mais do que a pobreza de espírito e a falta de horizontes. E hoje estou grávida de tanta ansiedade. Apetece-me partir a cara a todos os pobres desgraçados com que tenho, inevitavelmente, de me cruzar no jogo da complacência sem respostas. Um dos meus maiores anseios é desfazer os óculos ao meu vizinho, estilhaçá-los bem no centro da cara e virar costas, logo depois, sem ter de me justificar. Porque isso implicaria um longo jogo de palavras obscenas. Não me sinto, mesmo, inclinada a fazê-lo.
Qualquer semelhança com outra realidade já vivida pode não ser coincidência.

18.9.04

Nas entranhas misturam-se as necessidades naturais do corpo. Tenho fome e mastigo um cigarro e ainda hei-de morrer com os pulmões atolados em raiva. A imagem dela. O fantasma dela. Pode ser uma ela qualquer. E há momentos em que até nem incomoda, sabes? Tinha prometido a mim mesma que hoje seria um dia feliz e tinha planos para te beijar muito, entrelaçada no meu melhor sorriso. Acabei perdida na imagem corrosiva dela, outra vez. Comeu-me o sorriso. Quando me perguntas porque te amo, reservo-me ao silêncio porque na minha cabeça passeiam-se milhares de sombras de razões demasiado pequeninas. Amo-te porque, subitamente, sou paciente. E consigo ficar horas a ver-te dormir, enquanto desfio um sorriso terno, que desconhecia. Consigo atentar nas mesmas palavras as vezes que me pedires e sinto-as como na primeira vez, sem esforço ou decepção. Nos teus braços tenho menos medo do escuro e dos fantasmas. E acredito que todos os dias sou melhor por te trazer no peito, comigo.

12.9.04


Gestos pequenos como observá-lo, enquanto se dedica às mais triviais tarefas, são o meu mais recente pecado. E a noção de pecado tornou-se, de súbito, apetecível. O perigo é um desafio constante, contido no olhar e no desejo. Por ele era capaz de atravessar o lado escuro da terra. E duvido que me soubesse a sangue o seu abraço, algum dia.