23.3.04

Anúncio de Jornal de Quinta Categoria

Alguém me quer tomar por especial? Sem perguntas absurdas e silogismos de série B...
Senão morro no constante desinteresse do mundo.
Esta noite queria não ser eu e rir verdadeiramente, num tempo diferente. Queria pessoas verdadeiras e gatos e música num espaço menor.
Preciso de um mundo palpitante, nada vazio, onde todas as coisas possam fazer sentido e renascer, crescer em explosão doente e súbita. Preciso de perguntas e de um sorriso no lado de lá, atento, que me possa tocar o coração. De uma hora de salvação eterna. De poder falar horas a fio, sem pedir licença, sem culpa e de receber um sorriso que me arranque desta tristeza (e da estranheza que me torna alheia aos outros). Como eu quero canções e uma só gota de salvação!
Há dias, descobri como os velhos desta cidade são infelizes. É vê-los caminhar pelas ruas do Pelourinho, com os olhos postos no vazio e as mãos embaraçadas, por não terem nada que prender. São irritados, por natureza, e espalham amargura pelos cafés onde se sentam, com os olhos postos nas caras novas que a Universidade trouxe para o seu mundinho, pouco serenos e algo reprovadores.
Evito-os quase sempre, porque me sabem a solidão e eu não quero ser sozinha e prefiro nem sorrir quando se cravam, quase simpaticamente, em mim. Houve um dia, na feira, em que um deles me sorriu com uma ternura infinita e eu não soube responder. Encontrei-o, dias depois, numa esplanada quase a dormitar e eu a beber com intensidade o sol da tarde, e soube ler no seu olhar o pecado da bondade. O problema é que somos obrigados a generalizar, quase sempre- quis dizer-lhe. E não me perdoo por isso. Há um sujeito que costuma passear quando a noite cai na zona baixa da cidade. Recordo-o sempre como um vulto negro, e a sua passagem quase me magoa de verdade o coração. A primeira vez o que o vi estava erguido com imponência no cimo de umas escadas- de onde se avistava toda a Cova da Beira- e discursava palavras meias- mudas e esforçadas, com os braços erguidos no ar para o céu, para a terra, para a imensa paisagem que se perdia no horizonte. Passava, muitas noites, mesmo por baixo da janela da nossa casa, por entre o silêncio da cidade, a produzir as mesmas palavras indecifráveis e sofridas, em tom de lamento e de tristeza. Adivinhava-lhe uma dor maior do que o mundo e sentia o meu coração pequenino a latejar de pena, de doença e de infância. Soube que era mudo, que tinha ido à guerra (o que, aparentemente explicava os seus longos e sentidos discursos à humanidade) e roía-lhe a alma o não poder falar verdadeiramente. O que pode a vida fazer connosco, afinal?
A vida é uma teia de promessas e maldições, jogadas pela lei do mais forte, dir-me-ias, certamente, perdido em divagações tão próprias de entes superiores e de artistas. Nesse tempo, tínhamos um jardim pequenino, que evitávamos usar, pela proximidade escandalosa com os vizinhos, e uma janela enorme, encostada à cama, de onde víamos todas as noites, a lua. Na calmaria das tardes, a casa soava-me a fadas e eu sentia a presença de um anjo, ali. Aninhava-se no canto superior esquerdo do quarto, pertinho da segunda janela, que por dar para a marquise envidraçada (de onde se adivinhavam os olhares indiscretos da vizinhança), estava sempre propositadamente cerrada e coberta com umas cortinas verdes e brancas, vagamente decoradas com motivos florais. O meu anjo empunhava uma espada e tinha um olhar doce. Conversava comigo e perdoava-me as minha traquinices, sem nunca perder de vista o túnel negro que faiscava atrás de si e que me prometia o medo e a maldição. Só por isto, gostava da casa. E gostava mais ainda da sala, com uma televisão gigante, daquelas antigas, que ficava sempre bem nas nossas fotografias, enquanto ríamos e jogávamos às cartas as tardes inteirinhas. Nesse tempo éramos todos felizes, como folhas que soluçam ao vento e ríamos, em surdina, das histórias que inventávamos do senhor João do café, do vizinho preto (que nos perdoava sempre e nos abençoava com simpatia) e do sujeito estranho que vivia mais acima e, que todas as noites, chegava à rua de sentido único, estacionava e ali ficava, em longas horas de meditação, antes de regressar a casa, mesmo debaixo do nosso olhar indiscreto. Um dia esteve lá a polícia e vimos uma senhora triste e franzina levar tudo quanto podia de casa, alheia aos olhares da vizinhança. Nessa noite, ele chegou, pesado e sorumbático como sempre, mas não meditou. Achou-se sem ela. E nós aplaudimos, como num espectáculo Grego, a vitória da moral. Mas tive pena de o ver a deambular pela rua, sozinho, embrenhado em pensamentos difusos e violentos, de telemóvel em punho, em desespero. Acredito que tenhas atribuído semelhante sentimento à falta da mesa posta e da carne estufada para o jantar. Odiaste-o por isso, bem vi no teu olhar. O que mais me marcou, porém, foram os vestígios das presenças antigas que percorriam, sem surdina, os cantos da casa. Ríamos e atentávamos nos retratos, nas cartas antigas, nos postais da Praia da Rocha e do Estoril, nas prendas dos amigos (entre as quais uma tela velhinha de uma árvore invernal no meio das trevas), nos restos de licores espalhados pelos armários enormes e escuros da sala. Encontrámos um quimono, uma tarde, e ficámos a sonhar com a possibilidade real de ter vindo das terras longínquas do Japão. E enquanto as crianças das escolas ali ao lado davam o primeiro beijo, sentadas no muro mesmo em frente à nossa janela, eu era uma princesa do Oriente e tu um ilustre sedutor e amávamo-nos em jardins de água e pássaros, ladeados por árvores de todas as partes do mundo. Havia os cadernos da menina Susana, aluna aplicada, os seus desenhos e linhas dos primeiros desabafos e desencantos amorosos com o menino João, o menino Filipe, o menino Gustavo. Por debaixo do aquário onde se passeava o pequeno peixe solitário (que eu teimava em alimentar demasiado) moravam as linhas, os bordados inacabados e recados antigos. Numa gaveta da enorme estante, encontrei os documentos da matriarca da família- uma senhora preta e branca, de cabelo muito grisalho e com um ar maternal e rico. Tive medo de ter perturbado a sua paz e, a partir desse dia, resolvi não ousar entrar mais na intimidade dos que por ali passaram, embora pensasse muitas vezes, ainda, no estranho ocupante que ali habitara antes de nós, um quarentão acabado de divorciar. Permaneceu entre aquelas paredes alguns meses, provavelmente até se estabelecer definitivamente, e eu via-o como um sujeito sozinho, cinzento, mas feliz e aliviado , que por vezes para ali levava colegas de escritório a pernoitar. Não tinha filhos, acreditava, e ainda sentia saudades dos caracóis brilhantes da esposa (que de certo se chamava Marta) e do terno conforto do lar que haviam construído em conjunto.
Entretanto, aconteceu a feira- espaço de luzes coloridas imensas e barracas de orientais e índios, ritmados ao sabor de melodias quentes e animadas, mesmo por cima do solo da minha infância- e encontrámos um restaurante de pronto a comer estilo americano onde comprávamos bifes e vinho tinto para o jantar. Descobrimos, também, por esses dias, um cantinho ali perto, de onde éramos alvo certeiro de helicópteros nocturnos e de onde bebíamos, com esplendor, as milhares de luzinhas da Cova da Beira. E eu pensava sempre que a Covilhã ainda iria ser um centro enorme, quando seguisse o trilho longínquo das luzes, até ao Fundão, e as duas cidades se beijassem e reconciliassem. Tínhamos uma companheira, nessas noites, uma artista como nós, que nos tocava violino noites a fio, enquanto ríamos e chorávamos ao sabor dos dias e da vida.
Um dia, a artista perdeu-se, e a lua fez mais sentido no cimo da cidade. Sonhara, tempos antes, que as luzes da cidade, em euforia, iriam rebentar, uma por uma, e eu fugia contigo e com a nossa amiga artista (que mais tarde acabaria por ficar para trás) para o cimo da cidade, onde encontraríamos refúgio certeiro. Pensei que deveríamos fugir, imediatamente, mas hoje sinto que a ruína foi a subida. Hoje acho que naquela zona baixa havia mais para descobrir e, apesar dos olhares indiscretos dos vizinhos, mais privacidade e menos confusão. E, afinal, ter rosas a crescer no jardim dá outro sabor à vida. Perdemos o privilégio de ver a chuva a cair, na marquise, sobre a oliveira e sobre os canteiros e de saber as histórias de amor dos meninos de liceu. A nossa artista também faz falta, creio, ainda continuo a ter fé na sua música e nas estrelas que desenhávamos os três. Passo hoje pela calma rua de sentido único, onde ao pé da escola, o passeio é abraçado por um chorão doce e romântico, e onde se passeiam as freiras que nunca vimos, mas que moravam lado a lado connosco, e encontro roupas estendidas no nosso pequeno jardim. Sinto alguma inveja, confesso. Mas acredito, logo a seguir, que toda a gente, por diferente que seja, tem direito ao seu poema e à sua história de amor. Mas ninguém me tira da ideia de que, um dia, aquele jardim ainda há-de voltar a ser nosso. Havemos de nos sentar, ao sabor das memórias dos vinte anos, a ler poesia, como fazíamos sempre, e a chorar abraçados porque Deus fez o céu azul e não cinzento. E isso, meu amor, só tu compreendes.

19.3.04

A vida é uma teia de promessas e maldições, jogadas pela lei do mais forte

-Confessas-me o que é o amor no teu mundo enorme e altivo? - Um dia hei-de ser um bêbedo irremediavelmente perdido e tu uma estrela brilhante, mas continuarei as prender-te a mãos e o sorriso embaraçado na memória. Nunca mais se viram.

Sou um puzzle de ilusões.

E o tempo dos amores aqueceu-me a pele atordoada e confusa. Arrebatadora- originalmente, antes de o mundo fazer de mim isto que sou. Rasgou-se primeiro uma fotografia, depois uma carta, depois o meu corpo num grito fechado. Rasgaram-me o coração, mais tarde. Ficaram estes pedaços desordenados.
Nesses dias percebia, plenamente, a consciência e a complexidade humana. E desenhava, com pedaços de tijolos, pequenas casas onde me escondia dos mostros sagrados e do cinzento das janelas da minha própria casa. Tinha sonhos antes de ali chegar. Deixara o gato abandonado nas outras paredes idílicas e os meus recantos de princesa feliz, para encontrar somente a desordem e o veneno. Que um dia eu comecei, em segredo. Por um chocolate.
E adormeço hoje, uma vez mais, com o medo secreto de que o céu se abata sobre a terra, enquanto durmo. Os dois pólos que giram e me sustentam pesam-me muitas vezes na cabeça. Tenho dores surdas, agarrada à almofada e, infantilmente, chamo pelas coisas boas, num misto de temor e tristeza. Se gritar, acordo-os, mas se ficar muda posso morrer. Quando decido, falta-me a voz para o tão desejado grito e já os esqueletos se passeiam pelo quarto. Também não quero acordar amanhã e ter de os matar no pensamento. Desmaiei antes do almoço com o cheiro da cola, num dia de Inverno e nevoeiro. Mudou algo em mim nesse dia e os esqueletos nunca mais voltaram

As Fadas não usam baton

Não queria lembrar tantas vezes o cheiro a água benta misturada com tinta azul forte no corredor da casa dos meus pais. Aquela casa morreu depois de eu partir, tornou-se num monte pedras desordenadas e escuras, sem força para resistir ao frio e à neve. Antes, havia música para atrair as fadas boas. Hoje, apenas restam as imperfeições de dois seres que acabaram por se amar, à força de terem roubado a vida um ao outro. Sou fruto de dois poetas feridos pela vida. E as esmolas que souberam guardar no peito são versos inacabados que o tempo teima em roubar.