25.8.05

4h45 da manhã

Viviam os três na casa. Eles os dois e a arma. Embora a tivesse visto apenas meia dúzia de vezes, ela lá estava, escondida no guarda-fatos do abafado quarto de casal. E às vezes, durante a noite, quando o som dos corpos se misturava com o ruidoso clic da pequena fechadura do armário, sabia-se, desde logo, que Ela iria ver a luz da noite e do candeeiro velhinho, uma das poucas peças que sobraram das constantes mudanças de casa.
Nas primeiras vezes, rezava à santa e, quando Ela voltava para o reino da escuridão e os corpos ficavam a salvo, costumava adormecer com o coração a explodir de amor pelos céus, que a haviam salvo da vergonha, uma vez mais. Porém, com o tempo, o peito foi-se habituando às investidas do reino das trevas e mesmo nas horas de maior aflição permanecia no corpo a estranha sensação de que haveria de correr tudo bem, uma vez mais, e a arma voltaria a dormitar junto da roupa, no pesado armário de madeira.
Até que um dia, aconteceu. E nem teve tempo para perceber se o som seco que se fez ouvir a meio da noite, fazendo tremer o relógio do velho campanário de pedra da aldeia, proveio da arma ou da sua própria cabeça, que explodira entretanto. Às vezes, quando era criança, tinha medo que a casa ruísse. Com o tempo, instalou-se na parede do quarto, mesmo junto à janela, uma fenda muito pequena que lhe ocupou os pensamentos das noites desse verão, sob a forma de pesadelos. Também o céu lhe poderia cair em cima da cabeça a qualquer instante. Estava longe de imaginar, nesses anos, que o inferno partia dos corpos e não dos céus.

2 comentários:

deep disse...

as estrelas caem quando não há tecto para as suster...

Flour disse...

É um grave despertar da primavera... mais pesaroso que a sua inexistência.