3.8.05

Excertos de uma carta a um amigo.

I

Os passos das freiras, pela manhã, nos corredores gigantes e frios anunciavam a alvorada e faziam estremecer as meninas, ainda nos seus leitos pálidos,absortas em pensamentos que Jesus de certo desaprovaria, mesmo no alto do seu esplendor e complacência de santo. Era Pecado e um arrepio de frio cortava-lhes o corpo de uma vez só. O medo surge materializado, pela primeira vez, no murmúrio implacável e poderoso do Pecado. De noite, as horas eram de sobressalto, porque os santos saíam do altar e dos quadros pendurados nas paredes húmidas e dançavam ao som de cânticos mórbidos que, muito devagar, iam anunciando o inferno. Nas noites de Inverno, ouvia-se o crepitar das chamas, mesmo por debaixo do soalho de madeira e as meninas abraçavam-se ao terço, a rezar.

II

O medo corrói-nos os olhos e o coração, a pouco e pouco, (...). Os anos são medidos, não raras vezes, pela contagem de membros e talentos que ainda nos restam e pelo número de amputações que o medo já nos causou. Somos esperas silenciosas e o medo alimenta-se de esperas e de amores desfeitos. Com o passar dos anos, o medo carcome-nos o coração e, no seu lugar, instaura uma caixa vazia, onde ressoam apenas pequenas batidas mecânicas e frias que anunciam que, para infelicidade da alma, o corpo ainda vive. O medo come diariamente as nossas quedas vertiginosas, as dores de cabeça constantes, o cansaço e ódio pelo passar silencioso das horas. (...) Somos filhos do medo, submersos irremediavelmente nas suas raízes que, há muito, se cravam sob a nossa pele. Temos horror ao vazio e ao silêncio porque quando nada existe ouvimos apenas o tic-tac do relógio do medo que anuncia que o Juízo Final – o dia em que o medo tomará conta do nosso corpo - se aproxima a passos largos.

III
O medo nasce da estúpida inclinação natural que o homem tem para o amor. Infeliz aquele que ama com todas as suas entranhas, porque rapidamente ficará sem elas. (...) O medo é, portanto, filho do amor e tem mãos de gigante. (...)

IV
(...)

V
Ainda te consegues lembrar dos primeiros instantes de uma paixão, abstraindo-te do amor que agora sentes?(...)

VI
Esquece os passos das freiras. Entra na casa antiga. Ouve com atenção o som dos teus passos misturado com o teu próprio respirar, cada vez mais pesado. Sem medo, abre as grandes portas que encerram as enormes janelas e afasta, num gesto só, as pesadas cortinas de veludo que ali jazem há décadas. É muito provável que a luz te possa cegar. Perde-se sempre o hábito às coisas, aceita o destino com naturalidade. Porém, no meio da enfermidade, o medo vai morrendo com o reflexo do sol, como se de uma bactéria húmida se tratasse. É um processo lento, meu amigo, mas a pouco e pouco hás-de recuperar a visão, outra vez. Não entres em pânico. Os olhos estão apenas a habituar-se à claridade.

(...)
02 de Agosto de 2005

1 comentário:

Anónimo disse...

Alegoria da Caverna?