21.11.08

"Anxiety", Man Ray (1920)





2 de Agosto de 1978
Texto publicado na "Opção"
Man Ray e ainda a fotografia


Em Março de 1968 foi publicado em Lisboa um livro com umas centenas de páginas de respostas de escritores e artistas sobre a "situação da arte" em Portugal. "Semanas antes de Maio 68, que aqui chegaria refractado e lentamente. Terminava a série das minhas respostas com uma precisa esperança: "Faço votos para que o novo mate o velho, influenciando a arte e tudo o resto".

E hoje penso que inevitavelmente isso irá acontecendo; mas com duas reservas fundamentais. A primeira: que fora das sociedades rituais essa morte do velho é lenta e ressurgente, num mundo de fantasmas (revenants) do passado não vivos mas à espreita (o que dá por vezes a impressão de que nada muda). A outra reserva; que esta morte do velho é relativa, dialéctica, e contaminada de erotismo, quer dizer de amor. Os amigos, por exemplo, morrem apenas para viver (mais) na sua descendência, nós.

A polémica do novo

Seja como for o novo tem que se defender, polemicamente, a verdadeira oposição é entre o novo e o marasmo; o novo e a mediocridade; o novo e o conformismo. As expressões "nova" fotografia, "novo" livro têm apenas sentido neste contexto. Para a discussão sobre a "nova" fotografia oferecemos hoje aos leitores um documento, um texto. De facto, uma entrevista que fiz em 1953 a Man Ray. À minha ingenuidade da época opõe-se agora a lucidez do grande artista dadaísta. Perdido no número de Maio-Junho de 53 do "Plano Focal", este texto há agora publicado na íntegra. Que sirva às actuais polémicas sobre a "nova" e a "velha" fotografia; sobre as relações entre fotografia e pintura. Tinha por título

Man Ray

"É um acontecimento sem precedentes que a uma invenção mecânica como a fotografia - tantas vezes desprezada do ponto de vista da criação - tenha adquirido em menos de cem anos de evolução o poder de se transformar numa das primeiras forças visuais da nossa vida. Noutros tempos o pintor imprimia a sua visão sobre a sua época: hoje essa tarefa pertence ao fotógrafo". Moholy-Nagy.

Personalidade complexa, pintor, realizador de filmes de vanguarda, fotógrafo, criador de móveis e de objectos… "para fazer rir", Man Ray é um dos mais célebres criadores fotográficos, um dos mais discutidos e um dos mais combativos representantes da arte moderna. No começo da entrevista que nos concedeu, no seu estúdio da praça de St. Sulpice, em Paris, onde vive há muitos anos, o fotógrafo americano começa por se defender da cedência de fotografias para "Plano Focal" de maneira bastante bizarra: "Eu só trato com pessoas de dinheiro! Não… com as fotografias vendo o meu nome…", e no mesmo estilo prosseguiu durante algum tempo: falou de negócios, de publicidade, de direitos de autor… Foi com dificuldade que consegui dobrar esta corrente de eloquência; dar-lhe uma ideia dos nossos meios limitados, mas também do nosso entusiasmo… enfim: falar de fotografia.

"A fotografia é para mim, apenas um "aspecto preto e branco" da pintura. Assim como a escultura e a pintura são dois aspectos duma mesma realidade artística. A diferença é a mesma… é uma diferença de processo". Fala pouco, a sua conversa nervosa e entrecortada não é propícia ao diálogo. Mas quando arrisco a expressão "arte fotográfica" ele interrompe-me e afirma contraditoriamente:

"A fotografia não é uma arte em si… Poderá atingir altos valores: mas isso depende de quem a pratica. Há meia dúzia de criadores e esses, tanto o são com este processo ou com aquele. Em seguida vêm os imitadores. Mas repare, que não me insurjo contra eles: sinto-me até muito lisonjeado quando me imitam. Trata-se de pessoas que sabem apreciar… Pelo meu lado, procuro sempre a novidade. Mas não nos devemos indispor com aqueles que procuram sempre fazer a mesma coisa"…

"Há duas coisas que me interessam acima de tudo: a procura do prazer e da liberdade… É por isso que eu desprezo as coisas… dos outros. Há um problema difícil a resolver? É sempre possível encontrar uma solução fazendo o contrário do que se espera de nós… O resto são compromissos".

A palavra "compromisso" faz-lhe por um momento lembrar a sua preocupação parcial: "Fazer comércio, compromisso? O que não me interessa: não me interessa mesmo ganhar dinheiro; eu prefiro ter dinheiro. Mas, enfim, nem sempre sou contra os compromissos. Mas os homens de negócios não nos devem impor as suas ideias…". Compreendo que Man Ray, como fotógrafo profissional se refere aos editores de revistas, às casas de publicidade, etc.. E lembro-me que, apesar de uma certa incoerência patente nas suas palavras, ele se refere a um dos aspectos mais interessantes da sua obra: a procura e a defesa dum estilo próprio. E apesar de tudo, o facto de ter sabido impor esse estilo, de ter sabido inovar e mesmo torná-lo comercial - é sem dúvida nenhuma mais louvável do que o compromisso, a imitação do já feito.

Man Ray fala-me então dos seus "processos". "A fotografia, como qualquer outro processo artístico não deve limitar-se a princípios… Imitar a pintura? Porque não? Mas já lhe disse o que penso de toda a imitação. Eu não imito a pintura: com a fotografia… faço pintura. Todos os meios são lícitos, umas vezes emprego o "flou", outras procura a surpresa das sobreposições… Quando isso me interessa, invento novas trucagens de laboratório, ou sirvo-me das antigas. Veja por exemplo o "grão": é uma das grandes preocupações dos fotógrafos. A que penas se não sujeitam para o evitar? Pois eu sirvo-me dele! E com a ajuda do "grão" consigo provas que me agradam imenso. Já pensou como uma fotografia desfocada pode ser impressionante? Ou o que se pode conseguir com a sub-exposição de um negativo? É claro que uma vez saltado o muro, transposta a convenção, infringida a regra… a novidade deixa de o ser: vêm os imitadores. Foi o que sucedeu com a solarização. Hoje toda a gente faz solarizações".

Entendo arriscar uma observação sobre a diferença que há entre inovar quanto às formas (sempre relativo) e inovar quanto ao conteúdo… Mas Man Ray não me dá tempo. Consigo todavia, na última observação sobre o surrealismo, movimento artístico, ou melhor: cultural, com que Man Ray tem afinidades.

"O surrealismo tornou-se hoje permanente… e talvez tenha perdido a sua razão de ser. O caso de Dali, Chirico, são bastantes lamentáveis. Mas se não há surrealismo, continua a haver surrealistas. De resto, já os havia, mesmo quando ainda não tinham sido baptizados… Por mim, nunca estive completamente de acordo com o surrealismo: é todavia o movimento artístico mais apaixonante que tenho conhecido. Talvez assistamos actualmente a um recuo, um enfraquecimento - mas em arte não há progresso, o que é preciso é fazer cada vez mais forte".

1953: … os objectos não eram "para rir", e Man Ray tinha muito menos a ver com o surrealismo do que nos parecia então. Mas a "entrevista" aí fica, com a sua verdade textual.



Ernesto de Sousa

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