23.9.08

N.

Costumávamos ficar deitados no teu quarto. Era como se fosses uma extensão do meu corpo. Eu gostava de ficar, assim, imóvel, horas a fio, durante a tarde. Como se o meu corpo fizesse parte do silêncio trágico do fim do dia.

Da primeira vez que nos deitámos e ficámos enroscados no calor dos teus lençóis já gastos, pensei que tinha ganho o mundo. Com um pouco de esforço, poderias vir a tornar-te na "coisa" mais importante da minha vida. Numa daquelas pessoas a quem dizemos

"És a melhor coisa que me aconteceu"

e merdas assim. Só mais tarde soube que o silêncio é a raiz de todas as estórias e talvez esperasses que, a qualquer momento, eu gritasse - fosse o que fosse, desde que fosse bem alto. Depois, devagar, dirias

"És a melhor coisa que me aconteceu".

Mas, deitados na tua cama disseste-me "Tens os olhos rasgados"; "És linda". E afagavas-me o rosto, num gesto de ternura incomensurável. 38 graus na rua e eu esperava pelo dia em que te pudesse dizer

"És a melhor coisa que me aconteceu".

Já se sabe como são as coisas.
No início, tinha uma descarada predileção pela tua biblioteca; apaixonavam-me os teus livros espalhados pelo chão da sala, pela casa inteirinha. Não sei se me apaixonei por ti ou pelos teus livros deixados ao acaso em toda a parte.
Era o tempo em que até a tua gata falava comigo e me sussurrava que ainda haverias de ser meu. A tua gata tem, por ti, uma espécie de piedade.

Sejamos realistas. Não passámos de uma tempestade de verão. Eu passei a dormir mal depois de fazermos amor. Apesar de ficarmos tão cansados que era como se o corpo deixasse de exitir. E eu não gostava de sentir o meu corpo fora de mim.

Depois era o silêncio. Os carros que passavam lá fora. Um ou outro boémio durante a noite. A televisão do vizinho de baixo. Os passos da gata pela casa. O silêncio instalado, ao nosso lado, na cama, com mãos de gigante e abraço gelado.

E o medo a assomar, do lado de lá dos vidros da varanda. Era uma tarde de sábado, eu abri a porta e o nosso amor morreu.

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