21.7.05

O Inferno.

A aldeia dos Trigais foi, há algumas horas atrás, evacuada. A população abrigou-se na igreja da terra e, em conjunto, esperou que o fogo atravessasse a aldeia, num misto de horror e paciência. A essa hora, eu percorria a estrada das Pedras Lavradas, por entre um mar de fumo. Na berma, centenas de carros e de rostos pesados iam informando os curiosos. Quatro frentes de incêndio. Mais de cem quilómetros a arder. Os bombeiros perderam a noção da dimensão das chamas, que atingem 40 metros em alguns locais. Dizem que é o maior fogo de sempre. Um frenesim constante de carros. Curiosos uns, desesperados outros. O medo e o fascínio. Os familiares das povoações ao lado. Esperar que arda. De manhã, chegarão mais meios. Saber onde cortaram as estradas. Telemóveis em punho e conversas de café, no meio da escuridão. Um dia não são dias e esta noite é diferente. Os meios não chegam para assegurar a protecção de tantas aldeias espalhadas pelas encostas vertiginosas das imensas serranias.

Os incêndios fazem parte da nossa cultura. Muito embora pese o mediatismo súbito que a questão adquiriu de há uns três anos a esta parte, crescemos a ouvir falar das chamas que consomem as matas de quem ninguém quer saber.Estivemos lá, por infortúnio ou casualidade.

Subitamente, a angústia das populações mais recônditas do país, na maior parte das vezes as mais atingidas, começou a ser partilhada em directo para Portugal inteirinho, como se se tratasse aqui de verdadeiros trabalhos de reportagem de guerra. O método utilizado e a adrenalina que os repórteres querem fazer passar é, em tudo, semelhante. Porém, o maior ponto comum que existe entre o espectáculo do fogo, fascinante e tenebroso, e o horror da guerra que nos chega de outras partes do globo é, em absoluto, a gradual indiferença que vamos desenvolvendo em relação ao que nos chega pelos ecrãs de televisão. São inúmeras as teorias dos média que nos falam desta (dis)função narcotisante, que nos remete para o papel de espectadores passivos de uma realidade distante do conforto do nosso sofá.

Um amigo, relutante em nos acompanhar pela estrada, dizia:"Já estou tão habituado a estas coisas, vão vocês...", num misto de ironia e sincero desabafo. Eu confesso que também me começam a ser indiferentes os relatos das chamas noutras partes do país, mesmo que a atrocidade do fogo desperte em mim especial revolta. No ano passado, em função de a zona envolvente à minha aldeia ter ardido no ano anterior (geralmente, os incêndios acontecem ano-sim-ano-não, ao sabor do crescimento do mato), mantive-me distante e indiferente, enquanto o país era polvilhado por uma onda de inferno.

Hoje, os locais da minha infância, na Beira Baixa, estão a arder. Muitos deles, faziam parte de lendas e nem os cheguei a conhecer na sua viçosidade e esplendor. Ficarão, certamente, guardados no imaginário complicado e místico que são as minhas memórias. Talvez por tudo isto, agravadando-se a situação pela preocupação natural com amigos e familiares, despertei para a realidade dos incêndios anuais, meia ensonada e verdadeiramente sobressaltada.

O problema dos fogos é demasido complexo e possui demasiadas "frentes" para que possa ser combatido de uma vez só. Não sou dos que acredita, empiricamente, nas teorias da conspiração dos fogos postos, pelo menos na grande maioria das vezes. Todos sabemos o que um simples vidro exposto ao sol numa altura de grandes temperaturas pode desencadear. Estamos, sim, perante um grave problema de mentalidades, em que se acredita no pior cenário humano possível. Providenciar, à semelhança dos países ditos civilizados, a limpeza das matas nacionais não é tarefa difícil. Gastamos dez vezes mais em meios de terreno. Os guardas florestais são uns velhinhos simpáticos, reformados, que viram a sua profissão entrar em extinção.Não há profissionalização dos bombeiros. Os meios que usam são obsoletos. Não há uma cultura de prevenção.Os incêndios são mediatizados, exercendo um fascínio sobre as massas, que se agitam perante tamanho acontecimento. A juventude está-se nas tintas.Pegar numa enxada de vez em quando e dar uma "mãozinha" pode ser perigoso, como se diz, mas asseguro-vos que resulta.O que ninguém explica ao país é que grande parte dos incêndios, pelo menos no centro do país, são combatidos com o suor das populações.


Os incêndios em Portugal são, acima de tudo, o resultado de um país que se diz vanguardista e que tem vergonha das suas raízes. Os campos, antigamente cultivados, são agora deixados ao desleixo, afinal há coisas que parecem mal e as aldeias são destinos turísticos agradáveis, porque existem por lá senhoras vestidas de preto a cultivar alguns campos. Se querem mesmo saber, cada vez que ouço uma sirene de bombeiros, parece que pressinto as vozes dos mortos a chorar.


Na minha infância e adolescência, convivi de perto com os incêndios de Verão. Isto, numa altura em que os fogos tinham direito a um espaço de meio minuto nos telejornais e os jornalistas ainda se enganavam nos nomes das terras mais pequenas e longínquas.


Ao início da tarde, sabia-se, desde logo, a que horas o fogo havia de chegar, em função do estado do dia. Os homens da terra juntavam-se em bandos enormes (recordo as calças velhas do meu pai, guardadas quase de propósito para o efeito) e, juntos, encaminhavam-se na direcção das chamas, a lavrar numa qualquer terriola ali por perto. As mulheres ficavam em casa, meias atordoadas. Começavam os preparativos. Tanques de água, magueiras, baldes, pás, enxadas, merendas para os bombeiros e orações. Ao entardecer, as crianças eram encarceradas em casa. Por essa altura, seria suposto deixar de existir telefone. Divertia-me o som constante do outro lado da linha. Sabia de cor as horas até poder voltar a ouvir a próxima interrupção no sinal de linha. Por essa altura, o fogo já assumia a forma de clarão. Entretanto, os homens já tinham chegado. Juntavam-se aos bombeiros, vinham pessoas que eu nunca tinha visto e começava a longa espera. Cavavam-se fossos à volta da aldeia, num espectáculo medieval. As sirenes dos bombeiros mantinham, propositadamente, a população acordada. As mulheres, embrulhadas em xailes pretos, observavam.Normalmente, as chamas chegavam do cemitério, a partir de onde descia uma vertiginosa colina até ao vale da linha férrea. O fogo chegava sempre a passos largos, adquirindo velocidades estonteantes e era bonito.A encosta gémea, a seguir ao vale, enchia-se de vermelho vivo a crespitar. As tonalidades adquiriam maior diversidade consoante o tipo de mato consumido.As mais bonitas aconteciam nos castanheiros, cujos ramos se tornavam incandescentes. O fogo chegava sempre à aldeia durante a noite. De manhã, exaustos, os corpos repousavam nos leitos das casinhas sossegadas e, até ao próximo Verão, salvas.Durante o dia, ninguém frequentava o café ou as ruas da aldeia.Muitas vezes, reacendiam-se pequenos focos nas zonas ardidas que eram facilmente identificáveis pela maior quantidade de fumo libertada.A própria população tratava desses acontecimentos, com grande mestria e saber. Com os anos, as gentes aprendem as manhas das chamas.Um dia, alguém se lembrou de dizer que a pirotecnia das festas populares seria responsável pelo desencadear de alguns incêndios. Eu lembro-me de acontecerem alguns problemas, que a população resolvia logo ali, em função de conhecer o terreno.A partir de determinada altura, os bombeiros ficavam de plantão nas aldeias quando aconteciam os rebentamentos.Desde há algum tempo para cá, acabaram-se os foguetes.Eu morri um bocadinho, por nunca mais acordar com as estrondosas alvoradas que anunciavam que o dia era de festa e que o meu vestido seria o mais bonito da aldeia.

O que é certo é que, como seria de esperar, o inferno continua. E há-de continuar, até que se entenda que aquilo que efectivamente está a arder são as nossas mentes tacanhas e de campónios reprimidos.Urgem medidas concretas, de prevenção, inteligentes.

Há uns anos, um moço da terra deitou o fogo e confessou o acto, arrependido.Depois das diligências estarem concluídas, esteve preso um mês.Quando entrava na aldeia, já em Outubro, foi supreendido pela população que o ameaçou de morte.Nunca mais, que se saiba, cometeu tamanha falha. É importante que se entenda que o fascínio pelos incêndios é uma doença do foro psicológico que requere tratamento adequado.Ou isso ou um bom par de lambadas na cara.


Também os bombeiros merecem melhor tratamento.Menos senso comum e mais pacotes de leite poderiam ser úteis em situações difíceis. A lição maior que todos podemos tirar deste barbecue gigante é que se deve aprender com os erros. A pouco e pouco estamos a perder a nossa identidade, os nossos lugares de infância, a nossa memória. Tudo isto, meus amigos, apenas por mesquinhez e mentalidades minúsculas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Nas encostas íngremes da minha aldeia já não corre o ar lavado nos orvalhos frios das manhãs, agora caiem faúlhas quentes como lava. Os verdes que bordejavam caminhos são agora esqueletos corroídos de dedos erguidos aos céus. Caíram as árvores da minha infância na infâmia da ganância, esmagadas sobre a fúria das chamas...