8.4.20

So long, Marianne

- E foi assim, exatamente por tudo isto, que vim parar aqui. Talvez estivesse à espera de outros argumentos ou de uma análise erudita, suponho? Tenho para mim, cada vez mais, e repare como é particularmente irónico, que não possuo grande queda para análises. Tendo a perder-me no processo ou a estabelecer relações entre premissas de que depois me esqueço a origem. Posto tudo o que lhe disse, apenas posso concluir que me confundi na tentativa de apagar a Pessoa. Terminado o todo o processo de eliminação de fichas de indivíduos, lugares e viaturas e todos os rastos de eventuais contactos e até documentos que versavam sobre sensações, fiquei com a estranha impressão de que tinha partido, inadvertidamente, um daqueles expositores de vidro, com divisórias construídas com medidas muito precisas, para acomodar insetos raríssimos ou pedras semi-preciosas.

As coisas não são exatamente como as pessoas imaginam, como bem sabe. (Deixe-me só procurar o maço de cigarros... ainda agora o tinha aqui...) Eu própria idealizara outros procedimentos, fruto, creio, dos muitos filmes e da abundante literatura sobre o assunto. A verdade (cá está o maço) é que até os processos de eliminação são por demais aborrecidos. Talvez faça falta um certo sentido de missão ou talvez o problema seja meu. É por demais unânime que não possuo qualquer uma  daquelas condições que são consensuais nos manuais de auto-ajuda. De maneira que me encontro numa situação (tem um isqueiro?) um pouco ingrata (obrigada) de ser forçada, por questões meramente fúteis, a sobreviver num submundo povoado de papéis de arquivo que na realidade pouco peso têm no decorrer dos eventos. Mas avancemos, que não pretendo aborrecê-lo. Vê como me perco no processo? Sobre a sua questão em concreto, eu diria que o principal alvo agora sou eu. Tão perto e tão longe, não é verdade? Rio-me sempre quando me atrevo a colocar as coisas nestes termos. Serei capaz de eliminar o meu próprio ficheiro?

Julgo que agora há, simplesmente, que unir as pontas soltas. Tem-me ocorrido a ideia de me entregar, como há uns anos, ao capítulo das sensações. Por certo saberá que existe um momento muito particular na vida de toda e qualquer mulher em que ocorre a descoberta do poder do sexo. Eu diria que são os melhores anos. Será, talvez, o período da verdadeira beleza balzaquiana. Há uma enorme energia nos encontros de pele. Pelo sexo se ganha e se perde; pelo sexo se ganham e se perdem negócios e jogos de xadrez entre nações e continentes. Seria como que o casamento perfeito entre o mundo das sensações e o mundo das papeladas. Talvez não esteja a compreender, vejo-o na sua cara. Recebi centenas de horas de treino em ambientes hostis para ler pessoas. Apenas lhe posso acrescentar que, no que diz respeito ao universo feminino, existem inúmeras passagens secretas. E uma coisa lhe posso também afirmar: as mulheres são sempre as melhores na instrução no que diz respeito a guardar segredos. Decorre da fragilidade física: desde o começo dos tempos, a arte do secreto foi a principal arma da sobrevivência no feminino. Corromper papéis, exercer poder na sombra. É verdadeiramente habilidoso, não concorda?

Do outro lado da sala, já se haviam instalado os três estrangeiros. Muito provavelmente não a voltaria a ver e a operação não tardava em ser dada como encerrada, as instruções haveriam de chegar dentro de momentos. Como que a adivinhar, ela silenciou-se e precipitou a ajeitar o interior da pequena mala preta.

- Talvez tenha abusado da sua compaixão, esta noite -, disse, antes de ajeitar levemente o cabelo e se levantar num gesto de preguiça felino.

- Por certo que não - respondi, a tentar esconder o nervosismo causado pelo gerir do desfecho da operação.

- Realmente confirma-se que vocês são tipos de poucas palavras. Desse ponto de vista, temos um método de instrução muito diferente.

Estendeu-me a mão, ligeiramente divertida com a minha momentânea dificuldade de gestão.

- Perseguimos objetivos diferentes, suponho.

Ao devolver o cumprimento, surpreendeu-me que tivesse umas mãos tão macias. Estranhei que fosse possível carregar em permanência o ADN da morte, impregnado debaixo das unhas e, ainda assim, conservar tamanha candura nas mãos.

- Gostei de trabalhar convosco. Quem sabe se não nos voltaremos a ver?

- Quem sabe? -, retorqui, no preciso momento em que chegava a confirmação de que a operação havia sido dada como encerrada.

Acabara-se Marianne, acabava-se Paris e era, finalmente, hora de regressar a casa.

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