29.6.07

A vida é mesmo isto: uma habituação ao silêncio

Querido X,

A estranha sensação do meu mundo ter desabado. Permite-me que comece por explicar que o meu quarto cheirava, há dias, a um abafado doce. Disseram-me que é bom deixar entrar o sol pelas frestas das persianas do quarto, porque o mundo fica aos rectângulos de luz pequeninos. E eu acreditei. A quantidade de merdas que uma pessoa acredita quando anda meia perdida. Encontrei-me numa daquelas seitas. Ficava numa ruela meia escondida da cidade, perto do centro de exames médicos. Descia-se uma rampa, três lances de escadas e a gente parecia que acreditava numa espécie de felicidade. De maneira que já nem as frestas da persiana eram suficientes, mas quando o cheiro se tornou nauseabundo, arejei o quarto de vez.
E depois eu gostei daquele dia em que acordei com o cheiro a café pela casa (é tão bom acordar com o cheiro a café pela casa, pelo mundo inteiro). Nem sei bem porque não voltámos a fazer café. Que merda de cabeça a minha, sempre a hesitar perante as coisas mais simples da vida (lugar - comum - "A VIDA!". Excelentíssimos senhores, queiram levantar-se, eis A VIDA. Quero que a vida se foda).
Ou se calhar não. Se calhar nem quero.
Se calhar quero ter um carro melhor. Uma cara metade. Um bom ordenado. Uma ou outra viagem. E pronto: aqui estamos todos em estado vegetativo, a pensar quando é que vamos passar desta para melhor. Nunca gostei de velhos. Trazem o cheiro a bafio de uma vida assim: igual às demais.
Mais relógio, menos relógio, uma casa, outra casa. Uma coisa, outra coisa. E já me esquecia do que queria escrever. Já sei. É isso. Queria falar sobre o facto de, ciclicamente, as pessoas imigrarem. É exactamente sobre isso. Mas, querido X, agora que falo nisso, a verdade é que pouco há a dizer. Apetece chorar. É exactamente isso: as pessoas imigram e apetece chorar.
Não quero que os velhos se chateiem comigo, porra. Porque raio têm eles de sofrer pelo carro não ser melhor. Por não ter a cara metade. Ou um bom ordenado. Já nem falo das viagens. O problema desta merda toda é que os problemas são sempre circulares, independentemente da sua índole. E um gajo anda aqui a sorrir, como se nada fosse. "Em estado vegetativo". Precisamente, X. Em estado vegetativo. E ninguém quer saber. Sorrimos. Em estado vegetativo. O mundo em coma. O caralho do mundo em coma.
Nunca aprendemos a sofrer. Nunca. Quando o céu nos desaba em cima, esmaga o coração com a estranha intensidade de que como fosse a primeira vez. Ou se calhar, esmaga cada vez com mais força. E um gajo anda aqui às voltas. Eu não te disse que os problemas são circulares?
Eu não sabia o que era matar alguém. Até conhecer quem conheci (eu, tu, alguém, Y, Z - nunca tive particular facilidade em decorar nomes). Mas porra. Chega um dia, X, em que até o maior dos estados vegetativos se torna insuportável. Dia, X. O Dia X. Este é o meu dia X, importas-te? E hoje até me enviaram flores em surdina, com um cartão misterioso. Que vá à merda o cartão. E as flores. E o mistério.
Mistério, mistério é saber de que pó é feita a estrada.

Amanhã será outro dia. Levanto-me da minha cama e pronto. "Amanhã também é dia", dizia o meu avô. E eu acreditava. A quantidade de merdas que uma pessoa acredita quando anda meia perdida.

«Ontem comecei
A matar-te meu amor
Agora amo
O teu cadáver
Quando eu estiver morto
O meu pó gritará por ti».

É disso que eu preciso: um artista. E, quiçá, numa noite mais feliz, um doce suicídio colectivo.
Por amor à arte.

A merda toda começa quando um gajo se apercebe do som do próprio frigorífico pela casa.

3 comentários:

coma disse...

X marks the spot.

Bruno disse...

oiço o frigorifico

Divinius disse...

Tanta merda que até cheira mal...
Mas o que escreveste cheirou bem.
Abraço.