28.6.07

Bom Dia.

Querido X,

É como se a noite me tivesse adoecido nas mãos. Um dia, a luz da luz do dia fez-se de luz negra e eu deixei os sapatos de verniz vermelho pintarem-se de preto e dançarem, sozinhos, na soleira da porta da casa mágica.
Foi então que as mãos me adormeceram.
Mais tarde, foram-se as sílabas, as palavras, as frases de composição difícil. Suponho que o amor nos esvazia a alma.
Aprende-se a arte de compôr pequenos discursos triviais, ainda que férteis. De mentiras. "Como vai, senhor Z? E a esposa, passa bem?" (E as mãos a gritarem: " Essa puta anda o comer o Andrade". Gargalhada. As mãos riem-se e rebolam de tanto riso. "Só tu é que não sabes. Palhaço." As mãos gozam, entrelaçam-se. Os dedos, muito frágeis a partirem-se e a caírem no chão, absortos de tanto riso). "Eu vou bem, muito obrigado. Felizmente, tudo corre bem". (E as mãos a berrar: "Tirando os cabrões do Banco, a merda da hipoteca da casa. Já para não falar da falta de tesão do meu marido - será que o merdas anda a comer a mulher do Andrade? Não, seria demasiado para um banana de tamanha ordem. Anda mas é metido na cama de alguma puta. 10 euros, 20 euros. Que diferença faz? Ou se calhar até fazia diferença no caralho da hipoteca."
E as mãos a abrirem-se, a tornarem-se gigantes e as palavras pequenas. Muito pequenas. Tão pequenas que já não se vêm. Escutam-se em eco as putas das mentiras que vomitamos aqui e ali.
De manhã acordo e vomito logo na pastelaria. São um casal engraçado, os donos. Penso na miserável vida sexual que devem levar. Que casal normal conseguirá trabalhar em conjunto num espaço inferior a meio metro quadrado durante 10 horas por dia sem discutir?
O tesão é sempre desproporcional a qualquer tipo de plenitude.
De maneira que enquanto acordo, mergulhada na minha chávena gigante de café, vou ouvindo a senhora com as novidades da terra. E como as mãos ainda estão torpes do café, geralmente apenas é necessário abanar a cabeça, dizer que sim de vez em quando, enquanto se lança o olhar, de relance, para as horas ("Deve ser tão triste ser frígida", dizem-lhe as mãos. Mas ela não entende. A pobrezinha não entende).
Sempre tive horror a famílias perfeitas. De tão irrisório, o equilíbrio familiar aparece-me, invariavelmente, como uma merda cagada por um escritor de romances baratos qualquer. Uma mesa grande. Encontros diários. Tratar dos netos. Aceitar os desvarios deste e daquela porque é da família. Perdoar. Aceitar. Entender. Sacrificar.
Na verdade, gosto mais de famílias do género "O meu irmão é recluso, um verdadeiro filho da puta. Juro-te que não há maior filho da puta no mundo que o meu irmão". E uma pessoa acredita. Acredita-se sempre.
No outro dia, conheci uma puta. Mas uma puta a sério. E pareceu-me tão normal. Falava alto, dizia palavrões e eu não sabia que aquela mulher que falava alto e dizia palavrões era, na verdade, uma puta. Só soube depois. Tive pena. As putas são como os jogadores da bola: a coisa chega a uma altura em que não dá mais: envelhece-se. Devia existir um sindicato para as putas que envelhecem, ficam flácidas e não têm nada. Ninguém merece envelhecer e não ter nada. Nem as putas.
Depois da pastelaria, segue-se o quiosque. A mulherzita, coitada, é um bocado anafada e uma vez pedi-lhe para me guardar uns suplementos de um jornal qualquer de merda e ainda não era meio-dia e a gaja já os tinha vendido. Levei essa porra a mal. São coisas que não se fazem. " E depois a outra é que é puta", gritam-me outra vez as mãos, "até as mulherzinhas anafadas dos quiosques se vendem por meia dúzia de tostões".
A seguir, meto-me no meu carro de merda e, depois, um ou outro palavrão a olhar para o ponteiro da gasolina, último pensamento do dia anterior. ("Quem disse que amanhã é outro dia? Se calhar é outro dia para todas as coisas em geral, mas não é outro dia para os ponteiros da gasolina em particular).
E dirijo para o trabalho.
Pelo menos tenho as mãos ocupadas.

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