13.6.08

Um.

Esta tarde decidi morrer. Mas não daquelas mortes ficcionais e profundamente dramáticas que proliferam nos filmes americanos. Escolhi, para a minha morte, algo mais simples, mias eficaz e que não arranje grandes chatices. Até para morrer há chatices, na maioria das vezes. E a gente quer morrer, precisamente, porque se chateou com as chatices.

Ontem vi um cão esmagado na estrada e pensei

Que bom que deve ser estar abstraído e alheio do mundo. O corpo pesado e inerte, imune às contaminações que pairam no oxigénio. As gentes a roubarem umas às outras. O oxigénio.

Quando estavas comigo – antes de te ires embora, portanto

Por tanto

Era mais fácil respirar. Talvez precise de morrer jovem para que entendas que o meu corpo e o que está dentro do meu corpo – os ossos e essas coisas todas que a gente nunca viu senão nos filmes americanos – envelheceram muito cedo. E quando há dez anos fazíamos amor

Agora não. Deita-te ao meu lado. Por favor. Abraça-me.

Eu era, na verdade, muito idosa. E agora chegou a minha vez de morrer. Nada é eterno ou pululante o suficiente para durar uma eternidade. Muito menos o amor.






Dois.

Gostava do desenho improvisado do teu cabelo, pela manhã. E de deixares, sempre, invariavelmente, sem notares – perdida no teu universo de coisas abstractas – a mesma quantidade de leite no fundo da chávena, ao pequeno-almoço. Um dia até te comprei uma caneca nova, que tinha a medida exacta daquilo que costumavas beber.

O que é que acha que me consumiu o fígado, doutor

Gostava das tuas fases de eremita. As tuas fases de euforia. As tuas fases de defunta. As tuas fases cómicas. As tuas fases redondas. As tuas fases fases.

Gostava quando rapavas as axilas em frente ao espelho da casa-de-banho da casa alugada. Era como se o mundo tivesse, por fim, encontrado uma ordem certeira. Depois, sentavas-te à beirinha da banheira e usavas a minha gilete para rapar as pernas e ríamo-nos de tamanha falta de estética. As coisas não precisam de ser belas para serem extraordinárias.

És tão bonita. Era capaz de me emaranhar em ti para sempre

Durante a tarde, sentávamo-nos, mansos, junto à enorme janela do nosso quarto e víamos os meninos da escola a namorar, no muro em frente, contíguo ao velhinho edifício. Ao lado, havia uma casa de Freiras muito grande – mas nunca vimos nenhuma – e havia os vizinhos. Um dia a polícia chegou e levou a filha e a mulher de um deles. Costumava chegar do trabalho por volta das dez da noite e ficava no carro horas a fio, debaixo da nossa janela, perfeitamente imóvel, perfeitamente quieto, perfeitamente mudo. Antes de entrar em casa.

Tínhamos rosas no jardim e quando chovia, as gotas de água desenhavam a palavra “amor” nas grandes janelas da marquise.

Como é linda a nossa casa




Três.

Escusei-me de qualquer encenação, já o disse. Pretendo uma morte simples, que possa ser tão casual como o imediatismo de tudo o que existe neste mundo. Quero uma morte que passe despercebida à agenda mediática. Uma morte sossegada. Uma morte quieta, nem para isso tenha que ser uma morte lenta. Uma morte simples, no fundo. Despretensiosa. Uma morte que não seja cheia de morte. Uma morte cheia de nada.

Antes de ires embora

Portanto

Por tanto

Havia um anjo no canto superior esquerdo do nosso quarto. Ficava sempre quieto, de espada em punho, atento e certeiro, e envergava um escudo muito grande. Atrás do anjo do nosso quarto havia uma grande buraco negro - o buraco negro do nosso quarto-,de onde provinha um zumbido angustiante, de muitas almas perdidas, num queixume doloroso. Almas inquietas a partir em revoada.

Quando mudo mudo tudo


E, então, um dia foste-te embora. Cinco anos é uma eternidade. Devias ter vergonha de ainda não teres contactado ninguém. Um simples email. Uma simples carta semi-anónima com duas linhas indiferentes. Um sinal sem significado. Um sinal disperso. Um sinal de ti. Há quem ache que morreste e que, mais dia menos dia, hão-de encontrar o teu corpo, praticamente decomposto, debaixo de uma qualquer calçada amorfa. Há quem diga que foste assaltado e raptado e acabaste por te juntar ao gang - juro-te que é verdade. Há quem diga que foste para o Tibete ou coisa que o valha. Dividimos os teus livros e as tuas coisas todas por todos. Fiquei-te com o "1984" do George Orwell, algumas fotografias. Mais umas coisas sem importância. Não sei onde ficou o resto, não sei que restos eram. Quando te foste, há muito que a nossa casa tinha deixado de ser a nossa casa e o tempo o nosso tempo. Quando te foste éramos dois estranhos magoados.

Eu não sabia que quando mudavas, mudavas tudo. Palavra. Juro-te que não.

Eu amo-te assim mesmo tudo o que tu és és tu

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