14.6.08

Tributo à alma estilhaçada - os 120 anos sobre o nascimento de Pessoa

A Mediunidade de Fernando Pessoa

Pese embora o facto de Fernando Pessoa ser encarado, frequentemente, pelos seus muitos biógrafos, como um poeta eminentemente racional, a vertente espírita é extremamente forte no seu percurso e, consequentemente nos seus escritos, desde a juventude.
Na verdade, desde muito jovem que o poeta experimentou sensações que considerava inexplicáveis e que o levariam, mais tarde, a um estudo feito pela razão.
Conta o irmão de Pessoa que, não raras vezes, este tinha visões, ao espelho, que não correspondiam a ele próprio, mas a outras pessoas. Seria esta uma projecção infantil dos futuros heterónimos, "outros-ele"?
Também desde a sua juventude, o poeta tinha amigos ficcionados, imaginários, que o ajudavam a superar as dificuldades de deixar de ser “o menino de sua mãe”, de ter de mudar constantemente de casa e de não saber com certeza qual seria o seu futuro.
Seja como for, e começando pela mediunidade em Fernando Pessoa, o melhor documento que nos chegou como testemunho dessa vertente, é uma carta que ele escreve à Tia Anica em 24/06/1916. Nela, o poeta diz que a partir de Março de 1916 começou a ter experiências de médium, ou seja, de condutor de energias que não deste mundo.
Como que previsivelmente, a mediunidade revela-se, em Fernando Pessoa, através da modalidade da escrita automática. O autor conta que, vindo da Brasileira um dia, parou na sua secretária e começa a escrever “comunicações”, muitas das vezes incompreensíveis ou apenas banais, mas assinadas com outros nomes.

A sua primeira experiência terá surgido com o espírito do seu Tio Manuel da Cunha. Outro exemplo de mediunidade acontece quando o seu melhor amigo Sá-Carneiro (então em Paris) sofre de uma grande depressão - que o levaria mais tarde ao suicídio. Pessoa diz sentir tudo, como se fosse com ele mesmo, em Lisboa.
Relata, também à Tia Anica, uma instância de visão astral (vê a sua aura no espelho) e visão etérea (observa as costelas de um sujeito, na Brasileira, através do casaco e da pele).
É certo que se estava no princípio do século e que por toda a Europa o Ocultismo e a Mediunidade estavam na moda como nunca, mas Fernando Pessoa preferia, ainda assim, entender as suas capacidades como um “chamamento de um mestre superior”, um chamamento “para uma missão”. O Mestre Desconhecido, que aparece referido em outras ocasiões, é uma “desculpa” plausível para o crescente isolamento do poeta face ao mundo exterior. É que ele encara a sua missão como "fazedor" de mitos, revelador de mistérios, como uma missão mais alta do que a própria vida, mas justificada como um sacrifício advindo do seu destino irrenunciável. Claro que tudo isto pode ser apenas uma justificação racional para um desespero e uma solidão crescentes, que o poeta sentia cada vez mais como um drama que era impossível de superar senão pela sua inteligência e criatividade.
Se aceitasse que estava sozinho, que não tinha um futuro, bases seguras para amar alguém, para achar segurança na família e nos amigos, seguramente Fernando Pessoa contemplaria o suicídio, o desespero. Porém, ele absorve a ideia de um espírito de missão, em que é fundamental completar a sua “obra”, escrever cada vez mais, e cada vez mais sem medo, mais profundamente.

É também certo o interesse de Pessoa por religiões para além da Cristã. Sobretudo é conhecido o interesse na Escola Teosófica de Madame Blavatsky, uma imigrante Russa que, nos Estados Unidos, congrega ideias de variadas religiões numa amálgama que começa o que mais tarde se conhecerá como Movimento Ocultista. Porém, em Fernando Pessoa, o Ocultismo é mais do que apenas a Mediunidade.
Isto porque Pessoa foi, sobretudo, um poeta simbólico e é através dos símbolos que ele soube aproximar-se melhor dos mistérios ocultos da vida e da morte. A "Mensagem" é um poema simbólico e ocultista. Aliás, muitos dos poemas mais conhecidos do poeta são simbólicos.
António Quadros, na obra "Fernando Pessoa – vida, personalidade e génio", diz-nos que o poeta tentou aceder ao conhecimento oculto de três maneiras: como gnósico, pela intuição e experiência sensível - ou seja, pelas experiências sensíveis da mediunidade; como sófico - como intelectual, pelas suas capacidades de análise e de raciocínio - e, finalmente, como iniciático, ou seja, seguindo antigos ensinamentos das ordens secretas maçónicas, antigas desde as pirâmides, e que Pessoa junta sobretudo na tradição Templária, que em Portugal continua viva depois da morte de Jacques de Molay, grão-mestre dos Templários, na Ordem de Cristo.
Pessoa considera-se mesmo um iniciado nesta ordem templária. Aliás, é de referir a nota biográfica escrita pelo poeta em 1935, que pode consultar no site Major Reformado (secção Biografia Completa, Apêndices), onde este é bem claro ao considerar-se um “Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas”, “Fiel, por motivos que mais diante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo”.
Assim, e ainda que o Ocultismo marque a vida de Fernando Pessoa, nunca o poderemos dizer Ocultista, ou simplesmente Ocultista. O poeta é múltiplo como o universo, também e sobretudo nas maneiras como tenta entender o universo.
Se é certo que em poemas como "Na Sombra do Monte Abiegno", "Eros e Psique" ou "A Múmia", Pessoa é rigoroso e estritamente Ocultista, ele nunca se manteve dentro de regras, circunscrito a regulamentos, preso a técnicas. Desde 1915, interessa-se pelo Ocultismo mas, com 27 anos, não é um iniciado na sua viagem de descoberta, que seguirá muitos caminhos e tentativas.

(Versão corrigida. Original aqui)

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