Se desceres mais depressa, escapas-te dos olhares indiscretos da encosta. Ontem também me irritei aqui. Irrito-me mais ainda, hoje. Espero cruzar-me com um carro qualquer, no momento em que olho para os dois lados, para atravessar a estrada. Sempre a mesma rua vazia. Mais abaixo, há pessoas. Sempre diferentes, só eu sou parva o suficiente para passar aqui duas vezes à mesma hora. Não tenho paciência para isto. Esqueci-me dos comprimidos. Tenta não te irritar com a ideia, por favor! Pânico agora não, concentra-te a descer... Como é que me pude esquecer dos comprimidos? Mas também não vou precisar deles. Amanhã acordo cedo para tomar. Senão, irrito-me com facilidade. Os mesmos dois cães rafeiros à minha espera. Apetece-me pontapeá-los e ficar sentada na soleira da porta a vê-los flutuar pela calçada descendente, até se estatelarem no chão, muitos metros mais à frente. Sangue e carne no meio da noite. Tens medo que te mordam? São tão estranhos! Vadios, é o que são! Metem nojo. Olho de esguia para os bichos meio-mortos, enquanto enfio a chave na fechadura - nunca decoro... será esta a merda da chave?- Nem se mexem, os rafeiros!. Mas ouvi-os ladrar, na outra noite. A mesma dos passos e da água a correr. Afinal é a outra chave. Basta um empurrão para abrir a porta. Merda de porta! Vais estar à minha espera, de mãos nos bolsos com um sorriso e um beijo. E eu, irritada. Pronta para te dar um tiro e para te rosnar, cheia de indiferença. A culpa é da descida. Sempre tive problemas nos ouvidos. Faz-me mal o ar da noite. Podias mexer-te, de vez em quando. Não me beijes assim... eu até gosto. Já não sei onde meti a merda da arma. Sempre tive problemas com armas e com guerras. No outro dia até sonhei com o holocausto e tudo! Abraçar-te é uma boa ideia. Não sei onde estava com a cabeça quando me esqueci dos comprimidos. Ficaram ao pé do cristal chinês que parti sem querer e tive que pagar, na loja pindérica do centro da cidade. Malditos chineses, estão em todo lado! Sim, amo-te. Mas penso sempre noutra coisa qualquer. Não pensas, também, em outras coisas? Podias tirar aquelas fotografias da gaveta, se faz favor? Ai, os comprimidos! Não gosto daquela do barco e do cão. Ela é tão mais bonita que eu. Parece enfeitada de estrelas quando sorri. As minhas fotografias estão na parede, as dela estão na gaveta, mas ela tem aquele brilho indefeso e tu pensas nela, que eu sei. Vocês não alimentam aqueles cães rafeiros, pois não? Não saem daqui da porta... Não me deixes aqui sozinha. Obrigado por teres arrumado o quarto. Está tudo bem, sim. Amo-te. Para quem cantavas ontem, enquanto eu dormia? Que merda de irresponsabilidade tem sido a nossa? Agora ando para aqui a pensar nos conselhos da minha mãe e não descanso enquanto não tiver a certeza. É melhor não dizer nada. Não quero parecer neurótica. A porra dos comprimidos em casa! Sim, estou bem, estou bem. Gostei da rapariga que foi ver o quarto. Podes mostrar-te interessado no que te digo? Não sirvo só para estar aninhada no teu colo... Desculpa... Falta de afectividade? Não... eu amo-te... Beijas-me?
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